quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O Lóbi Árabe

Para quem acompanha as compras anuais de armamento por parte da Arábia Saudita e seus mais próximos aliados ou a produção diária de petróleo da região, não é difícil imaginar o poder político que estas compras e vendas de milhares de milhões de dólares necessariamente irão provocar. Nos Estados Unidos da América, os lóbis são entidades legais, aceites pelos cidadãos e que utilizam o seu poder financeiro e influência nos media para conseguirem junto do poder político os mais rentáveis negócios e vantajosa legislação para os seus associados.  

Por todos estes motivos, este livro escrito por Mitchell Bard despertou imediatamente o meu interesse. No entanto, rapidamente esse interesse acabou por se transformar numa enorme desilusão. Era inevitável que uma outra referência fosse feita a "O Lóbi de Israel", da autoria de Mearsheimer e Walt, mas não contava que o livro se resumisse a pouco mais do que uma incapaz resposta a esse livro. 

"O Lóbi Árabe, A aliança invisivel que mina os interesses da América no Médio Oriente" tem vários defeitos graves e que, na minha opinião, arruinaram o livro. Primeiro, Bard parece encontrar em praticamente todos os intervenientes do Médio Oriente um membro do lóbi Árabe. Sejam os missionários cristãos, os professores das universidades americanas de Beirute ou Cairo, as ONGs, os trabalhadores das petrolíferas, os diplomatas americanos, os Judeus não-sionistas, e até todos os países do terceiro mundo, os países da europa e a própria ONU. O autor parece ter dificuldade em compreender porque é que tantas e tão diferentes pessoas - a que ele e outros chamam de Arabistas - pareciam estar de acordo sobre os riscos da criação de Israel e, mais tarde, na posição pouco imparcial dos Estados Unidos em relação a este país. Um a um, ridiculariza cada um dos perigos levantados pelos Arabistas: os direitos das populações originais da Palestina; o risco de perder o acesso ao petróleo; retaliação económica por parte dos povos Árabes; delegitimização da posição Americana; ascensão do fundamentalismo islâmico; empurrar países para a esfera Soviética; guerras e instabilidade política. Todos estes riscos acabaram por se confirmar (embora em diferentes graus e momentos), mas não é assim que Bard vê a história.     

Na esmagadora maioria dos casos, o autor vai individualmente acusar cada uma destas pessoas de serem anti-semitas, jew haters, negadores do Holocausto ou apoiantes de terrorismo. Algo estranho até percebermos que a sua noção de anti-semitismo inclui toda e qualquer crítica ao governo de Israel ou ao Lóbi de Israel. Nas suas palavras: "[John Foster] Dules [Secretário de Estado de Eisenhower] fez também uma série de afirmações que podem ser consideradas como anti-Semitas. Por exemplo, em Fevereiro de 1957, queixou-se do enorme controlo que os Judeus têm sobre os media (...) e que a embaixada de Israel controlava o Congresso". Bard não parece compreender a diferença entre a crítica ao poder do seu lóbi e o ódio a um povo. Eu certamente não consideraria o estudo do poder do lóbi Árabe como um acto de islamofobia per se, mas seria interessante obter a sua opinião sobre o assunto. 
Sadat, Carter e Begin

Para personagens como Jimmy Carter, antigo presidente americano que conseguiu o processo de paz entre o Egipto e Israel, Mitchell Bard reserva um capítulo inteiro, afirmando que "(...) o anti-Sionismo de Carter estava implícito na sua seita fundamentalista e levou a ler a Bíblia de forma particular de forma a garantir direitos iguais para Judeus e Palestinianos". Acusações profundamente injustas para uma das pessoas que mais fez pela paz no Médio Oriente durante as últimas três décadas e que, não obstante a sua avançada idade, continua a percorrer as capitais todas da região para conseguir o que é aparentemente impossível. A paz no Egipto é fruto do seu trabalho e os prémios Nobel da Paz que Anwar Sadat e Menachem Begin receberam em 1978 bem poderiam ter sido partilhados com Carter, que de qualquer forma acabou por o receber em 2002[1].

Um segundo problema grave deste livro é a tentativa, francamente mal conseguida, de mostrar o lóbi Árabe como algo agregador e representativo da totalidade do mundo Árabe, misturando-o com a causa palestiniana, bem mais alargada em termos de opinião pública e menos financiada do que a primeira. No mínimo estamos a falar de dois lóbis diferentes. Em qualquer caso, esta ideia de um lóbi todo-poderoso não tem bases sólidas. A realidade é bastante diferente. O título está simplesmente errado e dever-se-ia chamar: o lóbi Saudita. É que durante o livro todo não ouvimos uma palavra sobre Marrocos, Argélia, Líbia, Jordânia, Iraque e tantos outros países... Árabes! E quando ouvimos é para descobrir que o "Lóbi Árabe" estava em guerra contra o Egipto de Nasser, contra o Iraque de Saddam ou a Síria de Assad. Talvez para ter um título mais interessante ou para conseguir defender essa fantasia de uma relação muito próxima entre a resistência palestiniana e o dinheiro do petróleo, Mitchell procura que o governo de 27 milhões de Sauditas seja representativo dos mais de 350 milhões de Árabes.

Por outro lado - e embora o autor não queira nem chegar perto destas questões - o Lóbi Saudita esteve ao lado do Lóbi de Israel em muitas destas matérias. Nas guerras contra Nasser (directas no caso de Israel, indirectas - via Yemen - no caso da Arábia Saudita), na confronto com o Irão pós-Revolução Islâmica, nas guerras contra o Iraque de Saddam Hussein e, acima de tudo, na espectacular artimanha que fez com que os mujahedeen repelissem o invasor Soviético. Algo que só foi possível com uma profana aliança de Israel, Arábia Saudita, Paquistão, Estados Unidos e os fundamentalistas islâmicos afegãos (mais tarde chamados de Taliban) e voluntários estrangeiros árabes (mujahedeens, no qual o jovem milionário Osama Bin Laden[2] começava a dar cartas enquanto líder e organizador de grupos de guerrilha e rotas para os combatentes árabes). Claro que na altura não ocorreria a nenhum Ocidental, Árabe ou Israelita chamar a estes de terroristas, mas isso é outra conversa...

Uma terceira questão que coloca relaciona-se com as fontes que Mitchell Bard utiliza. O inqualificável Steve Emerson[3] é uma delas, que é citado pelo autor em algumas acusações sem grande fundamento e ainda menos provas. Quanto às referências mais eruditas, utiliza as ideias de Bernard Lewis[4] como verdade absoluta mas demonstra completo desprezo por Edward Said[5], naquela que é a confirmação de uma visão dogmática sobre o Médio Oriente.

Concluindo, Mitchell deixa-se cair numa visão tendenciosa de quem claramente não é um académico neutro e desinteressado mas um assalariado de um lóbi que tem como objectivo arruinar outro. Mesmo sendo editor do jornal do poderoso lóbi Judeu da AIPAC[6][7][8], esperava muito mais. Uma pena, porque este é um assunto demasiado sério e que deveria ser estudado abertamente, de forma competente e inequivocamente isenta.

Só mesmo a influência de muitos milhões pode explicar como a Arábia Saudita é o único país do mundo onde as mulheres não podem conduzir mas que é tratado publicamente pela liderança ocidental como um país "Árabe moderado". Que bloggers como Raid Badawi sejam presos e chicoteados em praça pública no que é considerado um leal aliado do Ocidente. Que pessoas de outras religiões não posso ter os seus locais de culto ou sequer rezar na sua privacidade de forma legal. Essas leis e tradições só são aceites pela influência política ganha pelas multimilionárias vendas de petróleo e compras de armas. Cá estaremos a esperar ansiosamente pelo livro que será capaz de explicar como realmente funcionam esses círculos de interesse.

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