domingo, 4 de janeiro de 2015

Médio Oriente: Religião e Petróleo

Grande parte do mundo acredita que a alma do Médio Oriente está na sua religião, o elemento essencial e distintivo do povo e cultura locais. Isto acontece desde os grandes téoricos orientalistas, como Bernard Shaw, até aos populares que muitas vezes não conseguem distinguir um turbante Sikh indiano de um keffyeh palestiniano. Ao contrário de outras partes do mundo, como a Inglaterra ou Portugal, onde a esmagadora maioria dos seus cidadãos têm a mesma religião ou não professa qualquer religião, praticamente todos os países do Médio Oriente têm multiplas religiões, com enormes minorias melhor ou pior representadas e muitas vezes até no poder.

Muitos dos conflitos são rapidamente reduzidos pelos comentadores internacionais aos seus aspectos religiosos, cuja importância é colocada bem acima de outros factores étnicos, políticos ou sociais. No entanto, algumas destas visões simplistas são postas em causa quando olhamos para os problemas um pouco mais de perto. Se a religião é muitíssimo importante, não é certamente o único factor relevante e em muitos casos acredito que nem será o factor central do problema.

Na Palestina, Muçulmanos e Cristãos lutam lado a lado contra Judeus, onde dois passados diferentes e extremamente violentos - o da Nakba para os Palestinianos e o Holocausto para os Judeus - unem mais do que a própria religião. A PFLP (Popular Front for the Liberation of Palestine), organização terrorista e de extrema esquerda, responsável por muitos ataques de pirataria aérea e bombistas suicidas durante os anos 70, foi fundada e era liderada por um palestiniano cristão, George Habash, ele próprio um sobrevivente da Nakba. Os seus ataques continuam até ao presente, tendo sido o último em Novembro de 2014, num ataque a uma sinagoga onde morreram quatro fieis Judeus e um polícia Druze, para além de sete outros feridos. Naturalmente que os ataques bombistas suicidas cometidos por uma organização comunista liderada por cristãos não encaixa naa propagandeadaa ideias das 42 virgens no céu, mas contra factos não há argumentos. Também o casamento de Arafat com Suha Tawil, uma palestiniana cristã 34 anos mais nova, em 1990 vai contra a ideia dos palestinianos serem todos muçulmanos fanáticos, principalmente quando poucos anos depois Yasser Arafat ganha umas eleições limpas com 88% dos votos.

No Iraque, a organização terrorista Daesh (also known as ISIS, ISIL, Estado Islâmico ou Califado Islâmico) tem como principal adversário as forças paramilitares Curdas - os Peshmerga - igualmente sunitas, mas unidas pela língua e pelo sonho antigo de ter o seu próprio país, o Curdistão, adiado desde o fim do Império Otomano pelos poderes regionais e internacionais durante um século. Também aqui a religião parece explicar apenas um dos lados do conflito, mas não ambos. 

E por todo o Médio Oriente encontramos outros exemplos, como na Líbia onde uma guerra civil tribal e não religiosa continua a propagar-se sem fim à vista, na Síria onde uma coligação governamental com quase todas as minorias étnicas do país e até um grande número de Sunitas lutam contra o mesmo Daesh. No Yemen, onde a Primavera Árabe descambou numa guerra civil que mistura aspectos religiosos e étnicos. Ou até no Bahrain, onde é a falta de representação política e económica da maioria Shiita - e não algum aspecto dogmático religioso - que mantém uma situação de paz podre mantida apenas à custa de uma enorme influência saudita.

Ainda mais relevante do que a Religião, para compreender muito do que se passa no Médio Oriente, devemos olhar na minha opinião, para o Petróleo. Naturalmente, não serão os dois únicos factores a ter em conta e existirão outros que em muitas situações ajudaram a explicar o presente e o passado da região, tais como as invasões militares europeias e americanas, a colonização estrangeira, as guerras regionais, o nacionalismo árabe, outros nacionalismos (Curdo, Palestiniano), etc. Mas o petróleo é, e ainda será durante muito tempo, o combustível que faz rodar o planeta. Grande parte das suas reservas (assim como as de gás natural) estão no Médio Oriente, e são controladas por um pequeno número de países. A ascensão dos Estados Unidos e da Rússia ao topo dos produtores de petróleo, retirando a primeira posição à Arábia Saudita pela primeira vez desde a segunda guerra mundial, é um factor de enorme importância e cujos impactos não podem ser substimados. Se somarmos a este facto, a recente queda do preço do petróleo cujo barril caiu em poucos meses do seu valor "normal" de 95 a 110 USD para os 50 a 60 USD, ficamos com uma espécie de tempestade perfeita no sector energético que terá ondas de choque políticas e económicas enormes, quer para a região quer para a relação das grandes potências globais.

Vivendo num país que é um dos grandes exportadores de petróleo, não estranho que o assunto seja tratado diariamente pelos media locais mas também pela população, que compreende a importância do petróleo para todos os que aqui vivem. Os governos dos países exportadores de petróleo terão que reduzir drásticamente as suas despesas ou incorrer em enormes déficits orçamentais, uma decisão que não é particularmente urgente para países como o Qatar, os Emirados Árabes Unidos, a Arábia Saudita ou o Kuwait cujos fundos soberanos de centenas de milhares de milhões de dólares lhes permitem aguentar déficits durante muitos anos.     



Noutros lugares, como o Irão, a Venezuela ou a Rússia, situações orçamentais terão impactos muito mais sérios, mais violentos e obrigando a ajustamentos muito rápidos. Uma teoria interessante que anda nos media norte-americanos é a de que esta queda do petróleo seria provocada pelos Sauditas, numa tentativa de quebrar o Irão e os muito endividados produtores shale oil americanos. É um facto que a Arábia Saudita está em posição de aguentar o preço baixo e que na última reunião da OPEC defenderam (e conseguiram) que não fosse reduzida a produção de petróleo dos países do cartel, mas a verdade é que a Arábia Saudita já não é o maior produtor de petróleo do mundo. Caiu até para terceiro lugar. Quer os EUA quer a Rússia ultrapassaram o Reino. Fizeram-no com custos de exploração altíssimos (que chegam a vinte vezes o custo de produzir no Golfo Pérsico) e investimentos absurdos e arriscados. Agora, os dois líderes produtores procuram convencer o terceiro que existe demasiado petróleo no mercado e pedem-lhe se não se importa de reduzir as suas exportações, para que eles possam sobreviver. Estranha ironia.

Mas independentemente do que causou esta descida do preço, a verdade é que todos se preparam para ficar pelo menos um ou dois anos com preços entre os 40 e os 70 USD. E o Médio Oriente terá necessariamente de mudar. O Daesh depende do petróleo para continuar a sua jihad, o Irão para recuperar o seu lugar na comunidade internacional e levantar-se da crise económica dos últimos anos, as monarquias do Golfo para continuarem a sua ascensão económica e a manutenção de um garantismo estatal de outra forma impensável, o Iraque e a Síria para se levantarem (se é que o vão conseguir fazer na próxima década) e o Curdistão para chegar à tão ambicionada independência, agora que as suas forças militares têm o equipamento e experiência para defenderem o seu território e conquistaram o respeito do mundo ocidental, com as suas tropas mistas e uma sociedade inclusiva que protege as minorias étnicas e religiosos perseguidas pelo Daesh.   



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