domingo, 28 de outubro de 2012

Red Bull Air Race - O naufrágio de António Costa

Parecia uma excelente ideia. De uma só vez, António Costa conseguiria levar para Lisboa um evento de visibilidade internacional com enormes receitas para o sector de restauração e hotelaria da cidade, retirando-o à cidade do Porto, enquanto simultaneamente dava um humilhante golpe naquele com quem provavelmente estará dentro de poucos anos a lutar pelo cargo mais alto do governo, Rui Rio, presidente da câmara do Porto. Para além disso, teria naturalmente o apoio do governo em funções, liderado pelo seu Partido Socialista enquanto as cidades anfitriãs anteriores (Porto e Gaia) eram ambas lideradas pelo Partido Social Democrata. Como se não bastasse o facto de Lisboa ter um poder político naturalmente superior, para além do apoio governamental, António Costa era ainda presidente da Associação de Turismo de Lisboa (ATL), entidade que estaria responsável pela organização do evento. Por fim, a prova seria efectuada entre Lisboa e Oeiras, cujo presidente Isaltino Morais se tinha afastado do PSD depois de uma série de escândalos de corrupção[1].
O sucesso era mais do que garantido, depois de a 13 de Setembro de 2009, a prova no Porto ter recebido cerca de 720 mil pessoas para verem Paul Bonhomme[2] ganhar o primeiro prémio, batendo todos os recordes de audiência das edições anteriores[3]


António Costa - Presidente da Câmara de Lisboa
Mas a partir daí tudo correu mal. Os acontecimentos dos meses seguintes demonstram o nível de incompetência de António Costa e da sua equipa, juntamente com um desrespeito total pela "paisagem", como tantas vezes os lisboetas falam do resto do país. A diferença é que normalmente fazem-no de forma trivial e inofensiva. António Costa fê-lo com dinheiros públicos, erros processuais, possiveis ilegalidades e intriga política, como iremos ver em seguida.

A primeira indicação de que algo se passava chega de Menezes, presidente da câmara de Gaia uma semana depois do evento, a 14 de Setembro de 2009, considerando um "completo absurdo" levar a prova para Lisboa[4]. A este primeiro aviso seguem-se uns meses de silêncio onde o processo parece estar totalmente no segredo dos deuses.

É a 27 de Novembro desse mesmo ano, que começam a sair um grande número de notícias relacionadas com os boatos de uma transferência da prova para Lisboa. Nesse dia, Luís Filipe Menezes, edil de Gaia, acusa de "mais uma atitude discriminatória do estado"[5] enquanto Rui Rio, o seu homólogo do Porto, segue a mesma linha de raciocínio acusando o governo de não promover o equilíbrio no país. Acrescenta ainda que tem conhecimento, através de uma fonte oficiosa mas credível, de que a prova irá mesmo para Lisboa[6]. O verdadeiro problema para António Costa, começou precisamente aqui, já que as críticas não vieram apenas dos responsáveis políticos mas rapidamente começaram a chegar de todas as forças vivas da cidade. Para Costa, a humilhação de um potencial adversário seria extramemente interessante, mas a humilhação de centenas de milhares de eleitores, quando obviamente acalenta a esperança de um dia vir a ser Primeiro-Ministro, já não. Para além disso, a sociedade civil lisboeta não pareceu particularmente interessada na história toda. Talvez por não ter gostado de esse evento estar a ser retirado a outra cidade portuguesa ou possivelmente por não ter uma noção exacta da dimensão do evento. A verdade é que são practicamente inexistentes as declarações de apoio da sociedade lisboeta à passagem do Red Bull Air Race para a capital. Nesse mesmo dia personalidades portuenses, como o Bispo do Porto D. Manuel Clemente[7], vieram a público demonstrar a sua discordância, sendo seguidas nas semanas seguintes por muitas outras como Pinto da Costa, presidente do Futebol Clube do Porto[8], Rui Moreira, presidente da Associação Comercial do Porto[9], entre outros. Na sequência destas notícias, é de notar a reacção incrédula da Entidade Regional de Turismo do Porto e Norte de Portugal, Melchior Moreira, que diz não acreditar minimamente na transferência da prova para Lisboa e assegura que sempre assumiu a intenção de a manter nos moldes vigentes[10].

Rapidamente, uma série de entidades passam a estar debaixo de fogo. Nas semanas seguintes ouvem-se apelos à extinção da Associação de Turismo de Portugal por parte da Associação de Bares do Porto[11], e chovem os pedidos de esclarecimento relativos à intervenção do Governo[12][13][14]. Para além de António Costa, o governo e a Associação de Turismo de Portugal, os portuenses resolvem apontar espingardas ao alvo mais fácil e mais eficaz: os patrocinadores. A 1 de Dezembro de 2009, a Associação de Comerciantes do Porto, pela voz do seu presidente, Nuno Camilo, apela ao boicote de todos os produtos dos patrocinadores do evento (TMN, Galp e EDP), acusando-os ainda de terem os seus administradores nomeados pelo governo em total silêncio relativamente a este assunto[15]. A reacção dos três alegados patrocinadores não se fez esperar. Galp e EDP imediatamente fizeram sair à rua os seus porta-vozes para afirmar que não tinham sido patrocinadores do evento[17], enquanto a TMN foi mais longe não só distanciando-se da decisão como assegurando que independentemente da localização não patrociniariam a prova em 2010 não obstante terem-no feito no passado[18][19].
  

A confirmação oficial chega-nos umas semanas depois, através de notícia da Agência Lusa com fonte na própria Red Bull e na edilidade lisboeta[20]. É o momento em que passamos da questão política de termos uma capital a retirar um evento desportivo bandeira de outra cidade com apoio do governo central (com quem partilha afiliação política), para uma nova fase de atropelos legais e processuais cometidos por António Costa. O centro da trama situa-se agora em Lisboa e nas relações entre Câmara Municipal de Lisboa (CML), Câmara Municipal de Oeiras (CMO), Associação de Turismo de Lisboa (ATL), Instituto do Turismo de Portugal (ITP) e governo.


A primeira parte interessante refere-se ao facto de o acordo ter sido assinado pela ATL e não pelo presidente da câmara, não obstante serem a mesma pessoa. Ao fazê-lo evitou ter que se explicar perante a Assembleia Municipal, coisa que viria a acontecer apenas no mês seguinte, em Janeiro de 2010. No entanto isso significou que a ATL estaria a comprometer-se com um sem número de artigos que simplesmente não eram da sua responsabilidade, que iam desde espaço aéreo, leis de ruído, licenças para eventos desportivos, espaço marítimo/fluvial, utilização de publicidade em espaços públicos, etc, como escreveu detalhadamente Rúben Carvalho numa brilhante declaração de voto deste deputado à Assembleia Municipal lisboeta pelo Partido Comunista Português[21]. Esta proposta 14/2010[22] levada à aprovação da Assembleia por António Costa era de tal forma má que acabou por ser retirada pelo próprio, para procurar esclarecimentos junto da Red Bull. Entre outros assuntos, Costa não foi capaz de explicar o que significava exactamente o Event Venue (Local do Evento) já que isto definiria também a área cujos direitos publicitários seriam exclusivos da Red Bull[23]. Depois de falhada a promessa de uma reunião extraordinária para discutir o assunto, o presidente da câmara de Lisboa acaba por conseguir passar o documento em assembleia municipal depois de obter os devidos esclarecimentos da entidade organizadora da prova. O problema é que o documento assinado diz explicitamente que nada do que for acordado de forma verbal ou escrita que não esteja incluída no próprio documento é inválida, e os esclarecimentos (nomeadamente relativos ao Event Venue) não foram incluídos como anexos no documento assinado o que lhes retira qualquer validade legal.

Outros pontos interessantes são, por exemplo, o facto de estar no protocolo uma referência a 500 mil euros que serão pagos pelo Turismo de Portugal, um entidade estatal. A questão do favorecimento do governo central já tinha sido levantada diversas vezes pelas personalidades portuenses e de forma ainda mais violenta por Luís Filipe Menezes[24]. E sabemos pelo presidente do Instituto do Turismo de Portugal, que nos dois anos anteriores não tinha sido pago qualquer valor ao Porto ou a Gaia[25]. Este comunicado é digno de nota pois, por algum motivo que não é totalmente explicado, o presidente do ITP sentiu necessidade de, em pleno escândalo Red Bull, vir a público dizer que o Norte recebia mais dinheiro do que a região de Lisboa e Vale do Tejo. O problema é que no meio desse texto também dizia que Porto e Gaia não tinham recebido qualquer apoio. A partir daí sabemos que de facto, a ATL e o seu presidente António Costa, tinham algum tipo de garantias de apoios estatais que não existiam quando a prova era realizada no Porto, colocando assim o governo central na posição de patrocinador directo não só da prova, mas também da mudança da sua localização, ao contrário do que o autarca lisboeta dissera[26].


Temendo as reprecursões políticas na sua própria carreira, António Costa declara em Dezembro de 2009 que está "sensível para que a prova se realize alternadamente no Porto"[27]. Esta ideia viria a transformar-se num acordo informal entre as múltiplas partes três meses depois, onde nos asseguraram que "nunca houve guerra Lisboa-Porto"[28]. Embora tenha conseguido retirar alguma da pressão vinda do Norte sobre este assunto, é interessante notar que entretanto tivéramos a própria Red Bull, pela voz de Bern Loidl e na companhia de Isaltino Morais e António Costa, afirmando que a única forma de manter a prova em Portugal seria passando-a para Lisboa uma vez que "Porto e Gaia tinham limitações naturais"[29]. Na altura tive alguma dificuldade em compreender isso já que não tinha conhecimento de que o vale do douro tivesse ganho ou perdido alguma montanha, ponte nova ou arranha céus que pudesse ter qualquer impacto na prova. Para além disso, com um anfiteatro natural que comprovadamente conseguia levar para cima de meio milhão de pessoas (segunda a própria organização) seria difícil explicar o que havia de errado com o lugar. Depois de vermos este acordo para alternar a prova, sem que qualquer problema fosse levantado pela Red Bull, ficámos sem quaisquer dúvidas que o representante da Red Bull em Portugal simplesmente mentiu. Uma vez que é difícil imaginar um estrangeiro minimamente interessado nas pequenas guerras políticas entre Lisboa e Porto ou entre PS e PSD, a única hipótese para explicar isto era mesmo o dinheiro que a marca teria a ganhar com a mudança da prova.


Pelo meio tivemos ainda questões jurídicas, causadas pelo facto de António Costa estar literalmente a assinar o mesmo acordo entre a CML e a ATL pelos dois lados, ao ser presidente de ambas. Esta questão levantada na assembleia municipal levou a uma série de ataques e contra-ataques entre as várias forças políticas lá representadas mas não impediu a assinatura da proposta 14/2010. E é quando estes documentos chegam a público que percebemos o motivo porque a Red Bull estava tão interessada na mudança para Lisboa. Inicialmente, a proposta foi submetida à assembleia com muita da documentação relacionada em falta, como pode ser visto no próprio site da câmara municipal[30]. Mas quer na proposta quer no protocolo assinado pela ATL com a Red Bull, conseguimos confirmar que seria feito um pagamento de 3,5 milhões de euros pela host city (CML, CMO, IPT e ATL) o que não vai necessariamente contra o que fora dito por António Costa, que afirmava que a prova iria custar 250 mil euros à câmara[31]. De acordo com ambos os documentos, 2,5 milhões seriam resultantes de patrocínios. Para este efeito foi feita uma espécie de consulta pública a seis entidades para concessionarem o exclusivo da angariação de clientes[32]. Garantiam ainda que o tal valor do quarto de milhão era o mínimo aceite no concurso. Como correctamente escreveu Rúben de Carvalho, segundo o Jornal de Negócios, existiam várias propostas na mesa para além da da TVI[33]. No entanto, o consórcio vencedor deste concurso cujo processo ninguém teve acesso, não obstante ser directamente relacionado com instituições públicas, tinha oferecido apenas o mínimo dos 2,5 milhões exigido para entrar. Mas sabemos que o presidente da câmara de Lisboa anunciou a 4 de Fevereiro de 2010 que os patrocínios estavam garantidos[34].


Esse total a receber pela Red Bull no valor de 3,5 milhões foi, segundo António Costa, o mesmo valor pago por Porto e Gaia nos anos anteriores[34]. No entanto, segundo o deputado do CDS da Assembleia lisboeta por Lisboa, Carlos Monteiro, "as câmaras do Porto e Gaia pagavam um valor fixo de 800 mil euros - 400 mil cada - por dois anos de realização da corrida no Rio Douro. Lisboa, juntamente com os restantes parceiros, pagará 3,5 milhões"[35]. E acrescenta que as despesas de segurança pública e privada, bombeiros e infraestruturas que antes eram pagas pela Red Bull estavam agora na responsabilidade das câmaras de Lisboa e Oeiras e ATL. Também a isenção de taxas de publicidade era inexistente no contrato do Douro e a publicidade estava agora nas mãos da Red Bull[36], o que antes não acontecia. Por esta altura, já dava para perceber por que motivo a Red Bull estava tão empenhada em mudar a localização da prova.

O final, todos o conhecem. Nem Porto nem Lisboa. Uma espécie de solução salomónica mas onde o bebé acaba de facto cortado ao meio. A etapa em Portugal acaba por ser cancelada no dia 7 de Julho de 2010 devido aos incomportáveis atrasos provocados pela procura de um novo acordo[36][37]. Depois de meses de traições, jogos políticos, atropelos à democracia e abusos da interferência do governo central numa disputa entre autarquias, Portugal perdera um dos maiores eventos desportivos alguma vez feitos no seu território. A própria Red Bull acabou por desistir do Red Bull Air Race que não se voltou a repetir em nenhuma cidade do mundo no que antes chamavam de "a Fórmula 1 dos Céus".


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A Grande Depressão

Anos 30 - Fila do pão
Iniciada com o crash bolsista de 29 de outubro de 1929[1]a Grande Depressão[2]trouxe ao mundo uma miséria tão repentina e incompreensível que lançou as finanças, a economia e finalmente a sociedade inteira num ciclo vicioso que destruiu tudo o que encontrou pelo caminho. O mais estranho é que as lições aprendidas daquela que foi a mais violenta e global crise do século XX acabaram por ser esquecidas ou - pior do que isso - mal compreendidas. Quando estava na faculdade (num curso de ciências económicas e empresariais), a Grande Depressão não tinha praticamente qualquer expressão no curriculum do curso. Quando este assunto foi brevemente abordado, numa cadeira de história económica, o que nos foi ensinado foi que isso hoje nunca seria possível pois os conhecimentos de economia eram agora infinitamente superiores. Suponho que desde 2007 que já não ensinam tamanho disparate nas universidades...

Para um leigo, não é claro como um crash bolsista provoca uma crise económica e social de grande escala. Lá porque o mercado subitamente resolve avaliar as ações das empresas cotadas em bolsa 25% abaixo, isso não deveria ter um grande impacto na economia, para lá de uma resistência dos detentores de acções em as venderem a um preço tão baixo. Isso não deveria causar uma diminuição directa da capacidade de produção, da qualidade dos produtos ou da procura. E na realidade, directamente, não causa. O verdadeiro problema é o desaparecimento do mercado de dívida. Muitos dos investimentos financeiros (nomeadamente a compra de acções na década de 1920 ou a compra de casas no início do século XXI) é feita com recurso à dívida. Enquanto esses activos continuarem a aumentar de preço, essa dívida é segura, já que qualquer problema pode ser resolvido vendendo o activo e saldando a dívida. O problema começa quando esses activos subitamente valem menos do as dívidas que lhes estão subjacentes. A partir daí entramos numa situação "abaixo da linha de água", o que significa que o cidadão ou empresa que é responsável pela dívida e pelo activo, está agarrado ao activo porque não o pode vender para limpar a dívida e tem que pagar a dívida quer o activo lhe dê o retorno esperado ou não. O financiador, por outro lado, tambem fica numa situação impossível. Sabe que emprestou dinheiro a alguém que terá dificuldades em o pagar de volta e também não quer a penhora do activo porque este vale menos do que a dívida. Quer do lado do devedor quer do lado do emprestador, a tendência será por isso a de controlar os seus gastos de forma a precaver-se contra as previsíveis dificuldades. Isto significa os emprestadores vão parar de emprestar dinheiro enquanto os valores dos activos estão em queda, vão cortar nos empréstimos a outras instituições financeiras por medo que estas estejam ainda mais expostas a crédito malparado e forçam os seus devedores cumpridores a reduzirem a sua exposição. Tudo isto causa uma pressão enorme sobre todos os bancos, que ficam limitados na sua tesouraria, em todas as empresas, cujos investimentos vão ser adiados ou cancelados, e sobre as famílias, que sem acesso ao crédito e com medo do futuro retraem os seu consumo preparando-se para o pior. Nesta altura, todos os agentes da economia entram num ciclo de austeridade do qual ninguém consegue sair sozinho sob pena de ser o primeiro a cair.

Aí, a crise cai em cima da economia propriamente dita. Menos financiamento, menos investimento, menos consumo causam necessariamente mais desemprego, menos produção e cada vez mais dificuldades em pagar as dívidas. Como na história bíblica d'O Sonho do Faraó[3], a única verdadeira solução perfeita para os anos de vacas magras teria passado por poupar durante os anos de vacas gordas. Mas isso, obviamente, já não era possível. Como não é possível hoje.

Nos anos 30, a solução passou pelo New Deal[4] proposto por Franklin D. Roosevelt[5]. Incentivos do estado em grande escala, construção de grandes obras públicas, definição arbitrária da paridade entre o ouro e a moeda americana conseguiram colocar a máquina da economia americana a carburar novamente. O New Deal não foi no entanto uma solução rápida nem limpa. Custou muitíssimo ao estado americano e quando algum desse "falso" investimento foi retirado a economia caiu novamente em recessão, já nos anos 1936 e 1937. O que acabou definitivamente com a Grande Depressão foi mesmo a segunda guerra mundial[6]. Ao tornar-se no "Arsenal da Democracia"[7], os Estados Unidos da América beneficiaram de emprego total, escoamento de toda a produção e exportações massivas que limparam quase em absoluto as reservas de ouro e moeda forte dos aliados, em especial o Reino Unido como Churchill se queixou amargamente (só em 2006 as dívidas de guerra britânicas aos EUA foram finalmente finalizadas[8]). Mesmo no final da segunda guerra, o espectro de uma nova recessão ainda se encontrava no ar, não se tendo concretizado devido ao que ficou conhecido como o Plano Marshall, que por um lado financiou a reconstrução de vitoriosos e derrotados como também garantiu acordos comerciais extremamente vantajosos para os EUA.

Infelizmente, muitas das soluções aplicadas nessa época não são adequadas nos dias de hoje ou (como é o caso de uma guerra mundial) longe de serem algo que queiramos rever. Ao contrário dos anos 30, o mundo hoje tem fronteiras muito mais ténues e existe uma mobilidade populacional, financeira e económica incomparavelmente superior. Um programa massivo de investimento sustentado por um estado pode ajudar a resolver a falta de liquidez da economia temporariamente, mas a quantidade de dinheiro que se iria escapar do país via importações, remessas de imigrantes e fuga de capitais para offshores seria inevitável e em larga escala. Isto será ainda mais verdadeiro no caso dos países da União Europeia onde as barreiras são totalmente inexistentes. E não é preciso ir muito longe para encontrar exemplos disto: Portugal conseguiu entre 2000 e 2011 passar de uma dívida pública de 66 mil milhões de euros para 174 mil milhões. Um aumento de 163% no valor da dívida do estado[9], enquanto o PIB sobe de 127 mil milhões de euros para 171 mil milhões[10]. Um aumento do PIB a valores correntes de apenas 35%. Isto dá-nos uma ideia de como o new deal português falhou completamente nos seus efeitos. Quando as dívidas ultrapassaram o nível que os credores consideraram aceitável a queda era inevitável e este doping financeiro na economia deixou de conseguir sustentar uma economia que estaria provavelmente condenada à recessão.

As bases da teoria económica de John Meynard Keynes[11], tão em voga nos anos 30 e que deram as bases para o New Deal de Roosevelt têm o seu calcanhar de Aquiles no longo prazo. Na realidade o próprio previu isso embora não tenha mostrado grande preocupação com essas consequências. Quando lhe perguntaram o que aconteceria no longo prazo, a sua resposta foi "in the long run, we are all dead". Ele estava certo. Quase todas essas pessoas dos anos 30 estão hoje no céu (ou na sua concorrência). Mas nós estamos cá, e ficamos para pagar as contas todas. A economia está longe de ser uma ciência. A economia é ainda um mundo incompreensível cujas variáveis estão muito longe ser entendidas. Precisamos de novas ideias neste campo. Urgentemente.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Churchill 1940-1945 Os Melhores Anos

Max Hastings, autor deste livro publicado pela Civilização, assim como de outros que já aqui trouxe anteriormente (Operação Overlord) merece sem qualquer dúvida o título de um dos melhores historiadores contemporâneos. Não é fácil escrever um livro sobre Churchill quando 70 anos passaram e já tanto foi escrito. Para além disso, Winston Churchill será provavelmente uma das personagens com mais escritos livro sobre si em toda a história. 

Primeiro-Ministro inglês durante a segunda guerra mundial e líder do mundo livre durante um período em que a noite nazi caía sobre toda a europa central, Churchill aparece-nos aqui como uma personagem ainda mais complexa, desequilibrada e genial do que é habitual. Tive oportunidade de ler as memórias de Sir Winston, um livro magnífico que lhe valeu o Prémio Nobel da Literatura em 1953 [1], e a impressão com que fiquei dele era a de um homem brilhante, carregado de certezas e de alguma forma amargurado por ter perdido as eleições já mesmo no final da guerra na europa. Não pude deixar de notar também um certo tom apologético em relação a algumas das suas decisões, que foram escrutinadas ao detalhe durante e a seguir à guerra. Desde o desastre de Dunquerque, a perda da frota inglesa no índico, os erros na Grécia até à frustração da perda da Polónia para o bloco comunista (país cuja liberdade foi afinal de contas o motivo porque o Reino Unido e a França declararam guerra à Alemanha), todos esses eventos foram explicados por Churchill numa tentativa de limpar a sua imagem das muitas falhas cometidas pela sua liderança.

Sir Max Hastings no entanto não tem as limitações que Churchill tem a escrever sobre o assunto. Não necessita de dedicar demasiado tempo a explicar o porquê dos erros e tem o distanciamento temporal necessário para não ter que manter nada escondido (Churchill não pode revelar assuntos que eram ainda segredos de estado, tais como a descodificação do ULTRA, os códigos secretos das famosas máquinas Enigma da Alemanha). Para além de ser um historiador extremamente competente, é ainda um escritor de grande nível e um conhecedor profundo da realidade da segunda guerra mundial.

Churchill era um homem completamente fora do seu tempo. E ainda mais seria do nosso. Imperialista convicto, imaginava o lugar do Reino Unido no mundo e o seu na história. A famosa frase de Shakespeare "All the world's a stage" aplica-se melhor a este líder do que provavelmente qualquer outra pessoa antes ou depois dele. Acreditava na vitória em 1940, quando em todo o mundo a derrocada da Inglaterra era dada como garantida, desafiou Hitler a partir da sua pequena ilha e motivou os britânicos para uma vitória impossível, armou o país para lá de todas as suas capacidades humanas e financeiras e envolveu-se em todos os pormenores da guerra de forma obcecada. Cansava-se do jogo político rapidamente, não obstante ser um dos mais brilhantes oradores de que há memória e procurava pessoalmente a frente de batalha contra todas os avisos dos seus conselheiros. Foi o primeiro líder político a voar para a Normandia, dias depois do desembarque. Correu o mundo em conferências com os outros líderes, a animar as tropas e a tentar desbloquear situações militares e logísticas. Procurou batalhas mesmo quando sabia que não havia hipóteses reais de as ganhar, preocupado com o veredicto que a história lhe faria. 

E, em paralelo, acordava todas as manhãs com ideias novas e mirabolantes das quais grande parte foi vetada pelo seu gabinete ou pelos chefes de estado maior garantindo ao mundo livre uma esperança mesmo quando toda a lógica apontava em contrário. Se houve uma faceta  que me ficou marcada pela leitura deste livro, foi a de que Churchill simplesmente não permitia que a lógica lhe causasse quaisquer dúvidas na certeza da vitória. Em qualquer outra situação da vida, isto seria um erro tremendo. Possivelmente, temos ainda hoje que lhe agradecer o facto de na europa não vivermos debaixo de uma tirania nazi. Não fosse a sua voz e os seus actos e o mundo seria hoje muito diferente. E provavelmente para pior.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Passos e os aeródromos fantasmas

Miguel Relvas e Pedro Passos Coelho
A SIC Notícias anunciava esta madrugada que a empresa Tecnoforma, da qual o actual Primeiro-Ministro foi consultor e administrador terá recebido mais de um milhão de euros da Comissão de Coordenação da Região Centro num concurso de formação relacionado com aeródromos inexistentes. Tenho a certeza que os próximos dias dar-nos-ão mais informações sobre este tema, mas para já podemos ver o nome de Miguel Relvas a surgir novamente.

O país assistiu incrédulo à forma como Relvas sobreviveu a uma campanha avassaladora feita sobre ele pela comunicação social. E com bons motivos para isso. O Ministro Adjunto esteve envolvido em diversos escândalos anteriores à sua nomeação, incluindo o da falsificação de residência para obtenção de subsídios e do caso das viagens fantasma[1]. Já enquanto ministro o seu nome volta a aparecer relacionado com outros casos como o das ameaças à jornalista de "O Público"[2] ou da licenciatura tirada na Universidade Lusófona onde conseguiu a incrível proeza de finalizar um curso de 3 anos em apenas um[3].

Conheço algumas pessoas que defendem que toda esta campanha é o resultado de dois dossiers complicados pelos quais Relvas está responsável: o do mapa autárquico, cujas decisões têm impacto em dezenas de milhares de políticos locais, e a privatização da RTP, decisão que terá impacto em todo o mercado dos media. Talvez seja essa a principal motivação. Mas não será certamente aí que encontrarão a lenha com que o estão a queimar. A lenha foi dada pelo próprio e é o efeito directo da sua actuação como político ao longo das últimas décadas. E a cada dia que passa vamos sabendo mais sobre essa carreira de enorme sucesso iniciada ainda na década de 80, tendo sido deputado desde 1985, com apenas 24 anos.

Mas a lealdade de Passos Coelho a Miguel Relvas ultrapassa toda a normalidade. Destituído de qualquer apoio do eleitorado, constantemente associado a escândalos, o Ministro Adjunto e dos Assuntos Parlamentares mantêm-se firme no seu posto. E o Primeiro-Ministro queima-se mais a cada dia que passa, porque já não estamos perante um erro de casting mas sim de uma opção consciente. E a verdadeira questão passa a ser... porquê? Porque motivo não isola o problema demitindo-o?

Talvez visse enormes qualidades em Relvas que se sobreponham a essa passado mais obscuro. Mas essa seria uma lógica pouco sólida quando os defeitos são públicos e na esfera moral.

Ou possivelmente Passos Coelho olharia para ele como carne para canhão. Deixava-o tratar desses dois dossiers complicados e depois punha-o fora, já com o problema da RTP resolvido e o mapa autárquico desenhado e aprovado. Talvez não fosse uma ideia descabida, mas dificilmente conseguiria aguentar tantos meses de um autêntico pelotão de fusilamente mediático.

Ou, por fim, talvez Passos Coelho estivesse entalado e simplesmente não tivesse poder para o demitir. Poder formal teria certamente, já que a legitimidade democrática está no Primeiro-Ministro e não nos nomeados como é óbvio. Mas por vezes, e em especial com figuras públicas, quando se está perante alguém que sabe mais do que deveria saber talvez não seja possível confrontar directamente. Foi uma hipótese que muitas pessoas começaram a colocar discretamente quando perceberam que Relvas não ia mesmo cair. Mas mantida fora dos grandes canais de televisão e jornais já que se estaria a lançar suspeitos sobre alguém baseando-se exclusivamente em indícios contextuais.

Esta terceira hipótese ganha agora forma, à medida que as investigações jornalísticas sobre a empresa Tecnoforma e o seu antigo administrador Passos Coelho aparecem junto do nome de Miguel Relvas (então Secretário de Estado da Administração Local) e de concursos públicos pouco claros.

Só em 2003, no programa Foral (da responsabilidade de Relvas enquanto Secretário de Estado), 82% do valor das candidaturas aprovadas na Região Centro foi parar a esta empresa administrada pelo actual Primeiro-Ministro[4].

Agora esperemos que a investigação não acabe aqui, como aconteceu a tantas outras relacionadas com políticas e altas figuras da nação...

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O Primeiro Ministro demitiu-se

Pedro Passos Coelho
Aconselhado por um dos nossos leitores, aqui fica o momento deplorável em que a televisão pública nacional resolve ensinar o povo português a escrever a palavra "Primeiro-Ministro". A frase que escolheu no (usualmente muito interessante) programa "Bom Português" foi:

O Primeiro-Ministro demitiu-se 

ou 

O Primeiro Ministro demitiu-se

Este exemplo mostra um posicionamento político claro, de extremo mau gosto e - em termos gramaticais - perfeitamente desnecessário. Fez-me lembrar os exercícios de matemática do Ministério da Educação da Alemanha Nazi[1] onde se faziam perguntas como: 

A construção de um asilo para doentes mentais custa 6 milhões de Reichsmarks. Quantas casas poderiam ter sido construidas pelo valor de 15 mil Reichmarks cada, com esse mesmo dinheiro?

Não obstante a diferença de grau, a lógica é a mesma. Procurar usar o ensino para passar mensagens subliminares. Agora só falta o nosso Goebbels mostrar a cara.